sábado, 18 de janeiro de 2014

[BERENDINA VICE CITY]

Era um moreno, latino, alto. Barba mal feita e voz viril, posuda. Me lembrava o garoto propaganda da Gillete, que se não me engano, faliu ano retrasado com toda aquela queda da bolsa e tendência a Terceira Guerra Mundial. O mundo mudou. O mundo já não girava em seu eixo. Mas era moreno, latino, alto. De longe, um atrativo cara de idade. Tinha um jeito altivo de olhar e um jeito simpático de dirigir frases incompletas. Bom moço... Dava ares.

Era vizinho de frente, 204. Um arquiteto bem sucedido precocemente. Matinha sempre verde o jardim da varanda. Punha o lixo na frente todas as manhãs. E quelauqer um que examinasse aquele lixo diria que era alguém inconstante – casas sem cozinha, mulheres sem orelhas, a melhor parte da torta alemã. Era amigável com os cachorros, dois pastores de Picardia. Conquistara a cordialidade dos insetos... Esses povoavam alegremente a terra do jardim. Deixavam viçosos o ipê. Suas margaridas, hortências, flores exóticas, como o Oleandro Branco eram tão atrativas quanto falsas. Mal dava pra perceber a plasticidade de seu jardim, já que a moda do mundo novo era ter coisas que vão morrer depois de você. “O plástico chegou para ficar”, disse Oswald Montepregos, um cientista com cara de doente mental que usava um par de óculos na cara e não conseguia parar de coçar o nariz.

A frente da casa era amistosa, independia do sol que realçava as nuances amarelas sobre os muros baixos e as plantas. Tinha um ar de casa de família. Família com crianças, duas ou três. Ideia que vinha abaixo a primeira olhada cuidadosa, pela ausência de qualquer objeto que lembrasse a presença de pequenos.

Calçava os sapatos compenetrado, sentado naquelas cadeiras largas após o jardim. Cadeiras compradas em uma loja pro-movimento retrô do centro da cidade. Tinha uma mania de deixar a luz da varanda acesa. Fluorescente. De ler até tarde e dormir na rede.

Esquecia as cartas na caixa do correio, o jornal às vezes espalhado pelo chão. Assinava o “Diário” e o “Correio do Mercador”. Não era do comércio, mas sempre cortava a coluna de Matos Gusmão, um comentarista bairrista que era oposição ao governo e pagava tributos ao jornal para ter quinze ou trinta linhas de sangue no jornal.

A televisão era um modelo antigo, talvez uma Tooner TV dos anos 50, que dava para ver do lado de cá. Tinha botões grandes e uma resolução meio turva. O som dela era geralmente baixo.

Tinha ainda uma vitrola, daquelas que a caixa de som ficava na tampa. Tio Frederico tinha uma dessas na casa de praia em Buerlindas. A vitrola devia viver cheia de poeira... Ficava do lado da televisão. No ângulo estreito em que eu observava a vida alheia.

Embora houvesse trações de modernidade evidenciados pelos objetos geométricos coloridos que ficavam por todas as prateleiras, desde a varanda, a casa tinha um ar bucólico. Um tanto nostálgico. Quieto demais. Típico de quem vive a tomar chá, dormir e refletir.

Observava eu os pormenores, da minha janela comprida, que dava para a frente da rua. Todas as impressões sobre o moço eram fruto da minha dedução, basiada na minha inerente curiosidade feminina. Confabulações de progesterona. Tive que saber que ele fumava cigarro de menta e tomava vinho pro-seco. E isso foi culpa da aproximação causada pelo meu instinto metódico de organização e minha mania de rotinas e listas. Não suportava ver o jornal dele espalhado no chão do batente e dispunha-me a arrumá-lo e entregá-lo cada vez que me ocorria.

Não sabia muito sobre o vizinho da frente...

Foi um dia, numa manhã comumente corrida que eu o tive no abraço e no meio das pernas. Ocasional, nada intencional. Não tive opção, e ele muito menos.


Que sensação mais estranha. Sentia-me uma puta e tremia descaradamente refletindo o movimento do corpo dele junto ao meu. Mas tentei me segurar. Sentia a vibração. Pra mim, só queria que ele parasse. E parou. Suei, mas desci e disse obrigada. Fiquei esperando vê-lo ir naquele veículo. Um monstro azul. Decidi nunca mais pegar carona na moto do vizinho da frente. Bons moços precisavam de mais que isso para chegar a tal ponto. Qual era mesmo o nome dele? 

3 comentários:

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

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  2. É o meu conto preferido. Adoro a riqueza das descrições e me vejo vizinha também, espreitando da janela, me perdendo em "confabulações de progesterona".

    À medida que lia a descrição dele, mais queria saber sobre ela. Será que ela usava binóculos? Arrumava-se para espiar? Ficava sentada tomando um chá enquanto observava? Ou será que não parava quieta, excitada por encontrá-lo, objeto de ficção da casa em frente?

    E essa motoca tentação, hein?

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    1. fonsaca, que comentário mais divertido! até eu fiquei matutando sobre como ela observava o vizinho. esse conto ficou mesmo um mimo, especialmente porque foi escrito a seis mãos e cada vez foi ficando melhor. estou com mais alguns contos na ponta do lápis, posto um na próxima semana! :)

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