O mundo
mudou muito, minha filha, não sei se quero lhe contar. Melhor te pôr meias com
babados dobrados no calcanhar. Melhor te ensinar a andar pelas calçadas onde
mais gente caminha dando trezentos e sessenta repetidas vezes com o pescoço e
eventualmente o corpo. Melhor te dizer que quem acorda cedo encontra o pote de
ouro no fim do arco-íris. Te sacudo pra escola, te olho nos olhos. Te olho nos
olhos também te vendo dormir. Sonhos devagares te fazem revirar as pupilas.
Sonhos ruins te afobam e engolem seus gritos. Viver não vai ser sempre bonito,
como é bonito brincar e ficar embasbacado com a grandeza do mundo. É tanta
areia no parque, tanta gota no mar, tantas nuvens com caras de cachorro e de
gente que passam a se misturar. É oxigênio das árvores, comida que cresce do
chão, é irmão que vem na barriga, briga, zelo de antemão. Prova de amor é
pertencer. Prova de amor é procurar o seu lugar num mundo que mudou muito e
permanecer.