quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

[PORTAS RETRATOS]


Sentei no sofá da sua sala a primeira vez atônito. Incerto do que dizer, do que fazer, de por onde começar minha entrega. Algo naquele sorriso fez os meus segredos pularem do meu peito desgovernados, ditos, meramente expostos: carne na mesa de operação, para que ela com eles, fizesse o que lhe apetecesse. Podia desorganizá-los e romper suas terminações nervosas. Suturá-los depois de lhes tirar a melhor memória de dentro. Poderia fazer incisões gigantes neles, e deixá-los sangrar no metal frio até que a morte os separasse de mim.

Por algum motivo me mantive sereno. Não lhe dissera que meus segredos o eram. Mas penso que ela sabia. Andava faceira de pés no chão da sua sala. A casa era o seu mundo aberto pra mim. Mundo que cheirava
diferente ao abrir o portão. Mundo de lances de escada acima, na altura de quem só sonha. No chão de sua casa tão alta eu via que seus pés eram tortos, que não sentiam nunca todo o apoio que a gravidade lhe dava de presente. A respiração, a voz, os cabelos emaranhados na altura do ombro eram também presentes inimagináveis, os quais não se podia macular. Maculá-los poderia ser sabê-los, invejá-los, cobiçá-los, querê-los em outras de estatura maior, menor, mais curvas, menos covas, corcundas, mais caladas. Nada nela me inspirava medo. Tudo nela me inspirava segredo. Mais deles para compensar os que, desgovernados, me deixavam sem assunto. Quando iam ao encontro do seu imaginário, ela assentia com a cabeça, engolia o vinho, sorria um sorriso não inteiro.

Seus porta-retratos portavam momentos que não entendia. Gente de costas pra lente, de frente pro mar. Cabeças cortadas nos lados, pessoas sem foco sorrindo. Era o mundo representado na estante, sem palavras para o narrar. No nosso círculo havia os que viviam de costas pros outros imersos no seu silêncio. Os que não se importavam com o que os outros pensavam deles, os que nada viam, mas iam seguindo algo que lhes movia adiante.


- Life is what happens to you while you're busy making other plans.
- Como?
- É o que diz a música, nessa parte.
- Ah, sim... você fala do John.
- É. Talvez.
- Mas a gente vive fazendo planos enquanto vive.
- Que planos você faz agora, enquanto estamos nessa sala?
- Quero ser uma das pessoas na foto.
- Qual delas?
- A que está naquele porta-retrato, que você ainda não tem no aparador.
- Quer mais vinho?
- Sim.
- Darling, darling, darling...
- Gosto dessa música.
- Falo com você. De você.
- Você escolhe bem os vinhos e as trilhas. E sofás também.
- Talvez eu só seja boa com pequenas escolhas.
- Pequenas escolhas podem mudar uma noite. Excitar o amor. Salvar uma vida.
- Se tivéssemos a eternidade, faríamos mais ou menos planos?
- Beberíamos mais.
- Amaríamos menos.
- Erraríamos menos ou mais?
- Eu teria errado menos na sétima série.
- Eu queria ter a chance de fazer diferente.
- A sétima?
- Me dá mais vinho.
- I'm just sitting here watching the wheels go round and round.
- Estamos ficando bêbados.
- É esse disco.
- Em 2005 eu perdi alguém muito importante.
- Morreu?
- Caiu da mudança. Me atrapalhei, não arrumei direito. Não coloquei na
caixa com as coisas frágeis, nem deixei este lado virado pra cima.
- Deixar um amor escapar assim é como não poder repetir a sétima série.
- Você não sente a gravidade. Nem cabe essa comparação.
- E onde esse amor cabe?
- Nessa música, nessa sala. Na distância que meus pés não conseguem
dar conta de alcançar. Em quase dez anos daquele cheiro na minha
memória.
- Vinho?
- Sempre.
- Você faz a vida parecer uma aventura misteriosa.
- Tenho alguns arrependimentos.
- Eu tenho poucos. Diria até que quase nenhum.
- Talvez eu também devesse me concentrar nas pequenas escolhas. Mas eu
não sei nem escolher o pão que compro, enquanto a decisão de ir embora
ronda a minha cabeça.
- Eu sempre escolho pão francês.
- Me ensina a ser assim.
- Então escolhe uma música. O disco acabou.
- Coloca aquela do Daniel Johnston, que diz que o amor verdadeiro me
encontrará no fim.
- Mais vinho?
- Mais. E que essa música esteja certa.
- Um brinde a isso.
- E foda-se a eternidade.



. por Eliza Araújo e Raquel Medeiros

quarta-feira, 5 de novembro de 2014

[ESQUERDO PEITO]

Estar na minha pele
é estar à flor da pele
Prestes a sufocar
De mal ou bem
A si ou alguém
Sem ter bem motivo.

É ir pelo amor
Ou pela dor
É não ter pra quê nem por onde
e viver longe,
sem a certeza do agora.
Porém certa
da demora
do que de fato quero.

Estar na minha carcaça
É querer se ver do avesso
Sem apreço pelo que passou
Com pressa de que se viva o agora
Sem drama
Sem hora
Sem cortes secos nas cenas.
Já que não se é sem pele,
Já que sem pele não se pode o amor,
pelo menos
respeite minha flor.

domingo, 12 de outubro de 2014

[PALMAS]


Mãos.
Mãos finas que afagam.
Mãos minhas
que mães
do resto do meu corpo.
Dóem quando sem tato,
caem quando não sei.
Mãos simples que francas,
que infantis no regaço
que discretas no cansaço
e no calor.
Mãos que sem amor
não tem porquê.

Mãos irmãs
em que se parecem
Incertas de que se merecem.
Mãos não presas,
mas
tesas no que quero dizer.
Quando dadas,
oferecidas numa entrega,
o são em dobro -
logo
são ímãs do bom
onde as palmas,
assim como as linhas da vida,
não hesitam em ir.


Foto: Maria Hill

domingo, 28 de setembro de 2014

[MUITO MANHÃ]


Silêncio no mundo, palavras em mim. Soam ao pé do ouvido sem quem as diga. Vibram o suficiente pra me levantar. As palavras me tem; no compasso delas me anuncio nos feitos e nos não-feitos; naqueles que nesse dia precisam sair direitos, direto da cabeça pras mãos, das mãos para o papel, do papel para o sentimento de dever cumprido.

As palavras que me soam de além, ou aquém, me dizem que estar inquieto é estar vivo. Acordo e me movo. Nos livros, palavras não minhas, significadazinhas com a ajuda do meu querer. No sofá, minha preguiça não autorizada. Na porta minha pressa, que me bate sem que eu queira, me chamando de um lugar que é maior que eu, para o dever. Na porta, ela presa, tesa no que ainda preciso fazer. Na cozinha, meu apreço quente solta vapor sobre a mesa de canto. Me chama para uma exorcização do sonho, um chacoalhado de cabeça, goles sem pensar, quase nada para ser.

Não há muito o que narrar no silêncio que desbravo e furo com meus passos, meu sono, minha congestão e minha confusão. Me parece hora propensa, suspensa, densa para eu também calar em mim o que não merece quebrar este ou nenhum outro estado de graça. 

terça-feira, 2 de setembro de 2014



[CANÇÃO]


Do jeito que se mexia, naquelas meias trançadas que Fitgerald num livro chama tantas vezes de stockings, parecia que se amava. Se amava naquele corpo, daquele jeito, dentro daquela música que tocava. Se amava por direito; sem pleito de lado algum, a despeito dos que se continham dançando num balanço de conformidade, pesado pra idade, confuso pro coração.

Nada lhe prendia a não ser as meias. O que lhe prendia, no entanto não lhe  impedia o sangue de descer pelos pés, o calor de subir pelas canelas, a música de se chocar com a percusão de dentro, de coisa viva pulsando, querendo, buscando vida e encarnação, fazendo demarcação de passo, constância de canção.


De compasso descabido, de descabelo comprido, nada que precisasse explicar a quem quer que fosse. Nada que lhe custasse a liberdade de dançar como queria, apoiar-se na estrutura que lhe mantinha em pé, empostar a fé que lhe cabia na cabeça erguida e peito aberto. Sem dúvidas, sem dívidas, sem sanções. Aberto no mundo, mas preso nas canções. Preso apenas pelo compasso teso, certeiro em continuar, em não acabar na canção indo embora quando o coro canta mais baixo. É que ser pra sempre era compromisso; como era mudar apenas um pouco. Conservar apenas o louco que cantava os coros de outrora no ouvido de agora, definindo o então.    

Ilustração: Gabriel Araújo

segunda-feira, 18 de agosto de 2014

[DIALÉTICA DA CORAGEM]


Às vezes me perguntam de onde vem a minha coragem pra fazer coisas que só eu invento e tento. Ora, sem cerimônia lhes digo que a coragem não vem de lugar algum. Não a sei coragem e não sabê-la pode ser tê-la. O que me move se traduz no desejo intrínseco de viver o novo. Não é privilégio da minha carne, do meu sobrenome ou do meu dna, que eu saiba.

Eu vejo o novo e sempre o vislumbro melhor que o agora. Ninguém explica esse fenômeno no meu signo que se caracteriza pelo apego ao que passou. Mas o novo que vislumbro não me faz desgarrar de minhas memórias, saudades, segredos, medos que foram porque ainda, em menor escala, em roupagens de gala, o são. Nada do que foi, se foi por completo, pode ser que só me deixou desperto, esperto pro próximo furacão.

O não-medo que atribuem à coragem tampouco existe. O medo apenas não transpõe a barreira altíssima do sonho para se instalar em algum lugar. Fica contido como medo tem que ser. Sem se anunciar nem se apagar, quieto e esperando atenção. No sonho do novo não o vejo, só o que de mim será melhor ao passar do agora para o próximo passo.

Para onde vou não sei, só sei que onde estou não fico. O mundo move e eu devo fazer o mesmo. Voltar pode ser ir para o novo. Ir pode ser ver e vencer. Não tenho muita certeza, mas vejo o que pode ser, e no que pode ser, não tenho o que perder, não tenho porque hesitar. 

quarta-feira, 6 de agosto de 2014

[ESPERA E ESPERANÇA]


Proseio sobre a espera sem saber muito dela. Se é ela que mora no amor, ou se o amor que é parte dela. Há as que tiram o coração do peito e o põe na mão. Há as costumeiras, com as quais se coexiste sem aspirações. Mas ainda as que dóem. As que fatigam o amor e o reservam ao relento, sem saúde, sem se saber são.

Existem também as que não reconhecemos que temos. As que os outros nos informam que ali estão. Há as que demoram por natureza, as que tem mais silêncio dentro e fora. As que marejam os olhos sem permissão. Há as que trazem alegria: anseio, suor, frio e borboletas. Nem por isso menos morosas. Feitas de tempo que se pensa que perde. Feitas, na verdade, de tempo em que se procura não se pensar. Tempo preenchido com pequenas e grandes coisas, com o ir e vir e o voltar. Tempo em que se busca não olhar o mar, não ver fotos nos álbuns e não ouvir músicas que despedacem. No fim todo tempo de espera é tempo que se cede, querendo ou não. Tempo que depois se quer recobrar no encontro.

A espera é um ponto. Que liga o tenho ao quero. O agora ao incerto. O fim do ciclo ao começo de outro. Onde gira a roda viva cujo eixo é um mistério. 

quarta-feira, 23 de julho de 2014

[FLOR E SER]


Ser flor
É segurar a dor do parto no caule.
Ter tronco de lágrima caída
tão doída que jamais se foi.

Ser flor é também ser fruta
Truta fresca sem tempero
Cheiro e sabor
que se medra e não se entende.

É ter olhos fundos da noite
E balançar na manhã que avisa.
É boca seca:
silêncio afoito
calado na beleza.

Ser flor
tem um pouco de tristeza
Da antecipação de figurar o amor de outrem
De morar em vasos de água fria
postos no alto
de um lar alheio ao ar
e ao chão de terra.

É ter vida curta
E relevância de pétalas.
É não saber-se completa
No meio de um buquê.
É ser sem porquê
À serviço de quem
não se presta a olhar o não-belo.

Ser flor é mero
presente.
Ou mora
em memória
Ou em
jardim
Ou em cima
da gente.

Ilustração: Gabriel Araújo

domingo, 6 de julho de 2014

[AMOR DE LONGE]


Há amantes
Que na distância o são integralmente.
Sem descanso, intervalo ou distração.
Há os amantes que o são
Sem dias vãos,
sem se permitir
O despeito de não amar
- de amar menos;
amar ameno,
com pouco calor no coração.

Há amantes grandes.
Pequenos no jeito de amar no silêncio.
Olhando qualquer paisagem,
na ida e vinda da viagem
curta-metragem de personagens
sem nexo
perplexos
de existirem
na inexorabilidade da vida.

Há amantes que o são sem vergonha
cheiro de fronha
que se abraça,
mãos no regaço
sem pressa de que o tempo passe,
pedido que não se despeça
certeza de seguir no passo.

domingo, 1 de junho de 2014

[RELÂMPSO NO MEU LÉXICO]


Queria um jogo de palavras acariciadas, não jogadas. Palavrinhas cismadas, sentadas em círculo. Virtuosas, penteadas. Comportadas e contidas em não causarem intrigas. Palavras amigas. Dessas que fazem companhia. Das que cercam silenciosas, tímidas. Das que dizem o necessário, categoricamente fechando a cortina de momentos dramáticos, selando os porquês e a legitimidade das dúvidas que vão mais fundo.

Palavras humanas e por isso imperfeitas. Das que relevam uma incerteza, uma metáfora, uma ironia. Das que revelam mais que o que se diz. Das que se revisita na intenção de lapidar o discurso, nas que se volta para explicar que “não foi o que quis dizer”. Palavras mais vivas que eu, de preferência, mais inteligentes. Com coragem de serem suficientes, certas, próprias para hora, dia e lugar.

Palavras ademais mais elegantes, mais donas de si. Com menos rodeios, receios, receitas. Das que ressoam na memória; das que somem comidas pela história, virando imagens grandes, causando palpitações no peito, impedimento de ver direito, anseio. Palavras que outrora, na verdade em outra hora, velassem pelo meu sono, zelassem pelos meus passos, abrissem meus olhos e meu pensamento. Apenas para que meu dicionário e minha alma, que delas transborda, fossem riquezas.

domingo, 18 de maio de 2014

[CARGAS D'ÁGUA]



Pra quê reclamar da espera
se a vida é feita dela, 
por ela a vida passa
na vida ela impera?

Pra quê matar friamente o tempo,
o calor do momento,
o agora que já não é
porque já era?

Dos seres humanos
não entendo os meios.
Tantos são no caminho
Tantos passos, tantos freios.
meios meios meios
Jamais nos deixam
ser inteiros.

domingo, 11 de maio de 2014

[MORADA]


Linda.
Linda como a aurora
Não linda de outrora-
Linda de então.
Linda no sim
e no não.
Ambos seus,
Ambos sãos.
Linda no sorrir,
No ir e no vir.

Linda em estar
Aqui,
Acolá,
Onde escolhe.
No escuro se recolhe
Como quem não merece atenção.

Onde escolhe
ser e estar,
transborda de si por onde
passa
anda aleatória,
chora de rir,
dança com a música
do momento.
Ri do tempo
Que foi, que vem e
Virá.
No seu peito
hoje
meu alento
se resume

em morar.

domingo, 27 de abril de 2014

[LÍNGUA MÃE]


Materna.
Em teu seio, ó liberdade.
Canta em tons nordestinos
na minha fala
inexoravelmente.
Resolve os meus sentimentos
Ordena os meus momentos
Me põe moderna.

Manda na minha poesia
Medo do que dela não conheço.
Amando vou, no presente
A mando de meu próprio coração
Distorcendo-a livremente
Com a maior
E sem a menor intenção.

Se me deparo com ela no silêncio,
inimiga.
Se a completo com  línguas primas,
abriga.

No escuro do meu peito
Sem anunciação e sem jeito
Deixo ela me narrar a vida
À torto e à direito.

Foto: Museu da Língua Portuguesa

segunda-feira, 21 de abril de 2014

[TEMPO PERDIDO]


Faz tempo não faço um poema.
Faz tempo não proseio
como poderia,
como pradaria.
Como prosa ria
quem ri
amena.

Não sei por onde começar,
que rimas combinar;
em que
e quem pensar,
com redondilhas menores -
para ouvidos melhores
aguçar.

Passo a mão na inspiração,
jamais a perna
pra que eu não a perca e ela não me deixe
no desleixe de não sentar:
papel, caneta  e solidão.

Faço
versinhos ingratos,
já não me saem baratos;

mas selam a vontade de então.

domingo, 6 de abril de 2014

[REGALO]


Te dou um beijo.
Quero que você me devolva ele.
Na devolução, movimento e presteza
No fechar dos olhos,
atenção e certeza.
Vontade de beijar de leve
Aproveitando discreto
o ensejo.

Te dou um papel
em branco amarelo.
Quero que me devolva ele.
Na devolução,
traços de nanquim e desejo.
No fechar dos ossos,
Imprecisão e preto.

Ah, vontade!

(Eliza Araújo e Débora Gil Pantaleão)

Foto: http://www.pinterest.com/pin/212372938650495050/


terça-feira, 25 de março de 2014

[NUA E CRUA]


Caminho com dificuldade. Você vê que esforço faço pra me levar adiante. Mesmo assim, sempre erro no auge do meu cuidado. Então descuido sem desespero. Sem exagero no destoque, no despensamento. E despensando vejo a vida como ela é. Inofensiva de tantos ângulos, cíclica em tantos pontos, frágil em tantos porquês. A vida fluida, fria, oca. Você me vê insistindo viver assim e me vê louca. Penso: você tem um recalque nos olhos que sempre te faz olhar mesma coisa; e eu uma falha na idéia que sempre me joga no mesmo erro – sem que eu sequer me mexa. Imperfeitos que somos, deuses de nossos desejos, não nos afastemos muito. De mãos dadas, vamos sair pra ver o sol.

domingo, 16 de março de 2014

[CORPO PRESENTE]



Agora nasceu para ser sorte. Para pairar no meu norte me acalmando o coração. Se desenrola na frente dos meus graus corretivos que não me deixam perder a cena – pequena, complexa, nobre. Agora já é, agora não dá mais, agora agorinha eu sei. Presente pra mim, impossível de transpor, difícil de ver através. Me situando no meu lugar no mundo. Me fazendo respirar mais fundo antes do meu próximo pulo de um lugar mais alto. Na confusão do agora descanso. Na incerteza de agora pulo. Indo, vindo, tecendo a minha existência da matéria de que sou feito e do que estou vivo. Há o amor me apontando para o lado certo. Há a dor para equilibrar a balança. E na dança de mudar para ser parte do novo, me movo, renovo, escolho não me cansar.

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

[HUMANO AMOR]

Amo
Um ser humano –
pele, osso, carne, cor.
Anda, fala, ri, chora, sente.
Às vezes mente.
Julga as coisas mundanas exageradamente,
age humanamente ao meu redor.

Todo dia
Faço dele alguém pra mim
apostando minhas fichas de fé e esperança
Não investidas na mudança,
mas em sincronizar a nossa dança,
abençoar a nossa graça,
crescer a nossa força –
Sabendo da certeza de nossa passagem,

Sentindo como quem veio pra ficar. 

domingo, 16 de fevereiro de 2014

[sem título]


Que bom seria ter um amor como você. Amor que acordasse cedinho, que gostasse de café forte e tempo frio. Iríamos a lugares humildezinhos caminhar desperdiçando o tempo. Falaríamos dos assuntos que nos atormentam. Da de Maria que casou, do salário que atrasou, de como a vida pode ser ingrata e sem sabor.

Que pena que esse mundo é o lugar em que viemos parar. Que bom que para compensar, nos encontramos. Que maldade a minha de, de te querer para mim sem limites. Tenho vontade de saber se sou mesmo apenas fruto da humanidade pós-moderna convencida pelas convenções ou se é mesmo amor essa coisa que me faz mal conseguir respirar.

sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

[SAGACIDADE]


(Eliza Araújo, Paula Peixoto, Luís Venceslau)

Vou botar fogo na casa
Depois espalhar a brasa
Só pra poder te queimar

Vou te culpar por tudo
Depois me fazer de mudo
Só pra não te escutar

Vou te pôr na geladeira
Te esquecer a noite inteira
Só pra te ver congelar

Vou te virar pelo avesso
Comer de garfo o apreço
Que um dia vi me encantar

E se sobrar algo teu
Vou misturar cor no breu
Do teu destino de fim
Que assim fico eu
Rindo do que deu

Tirar você de mim.

Foto: Black Look Evil Eye Necklace - sheinside.com


sábado, 18 de janeiro de 2014

[BERENDINA VICE CITY]

Era um moreno, latino, alto. Barba mal feita e voz viril, posuda. Me lembrava o garoto propaganda da Gillete, que se não me engano, faliu ano retrasado com toda aquela queda da bolsa e tendência a Terceira Guerra Mundial. O mundo mudou. O mundo já não girava em seu eixo. Mas era moreno, latino, alto. De longe, um atrativo cara de idade. Tinha um jeito altivo de olhar e um jeito simpático de dirigir frases incompletas. Bom moço... Dava ares.

Era vizinho de frente, 204. Um arquiteto bem sucedido precocemente. Matinha sempre verde o jardim da varanda. Punha o lixo na frente todas as manhãs. E quelauqer um que examinasse aquele lixo diria que era alguém inconstante – casas sem cozinha, mulheres sem orelhas, a melhor parte da torta alemã. Era amigável com os cachorros, dois pastores de Picardia. Conquistara a cordialidade dos insetos... Esses povoavam alegremente a terra do jardim. Deixavam viçosos o ipê. Suas margaridas, hortências, flores exóticas, como o Oleandro Branco eram tão atrativas quanto falsas. Mal dava pra perceber a plasticidade de seu jardim, já que a moda do mundo novo era ter coisas que vão morrer depois de você. “O plástico chegou para ficar”, disse Oswald Montepregos, um cientista com cara de doente mental que usava um par de óculos na cara e não conseguia parar de coçar o nariz.

A frente da casa era amistosa, independia do sol que realçava as nuances amarelas sobre os muros baixos e as plantas. Tinha um ar de casa de família. Família com crianças, duas ou três. Ideia que vinha abaixo a primeira olhada cuidadosa, pela ausência de qualquer objeto que lembrasse a presença de pequenos.

Calçava os sapatos compenetrado, sentado naquelas cadeiras largas após o jardim. Cadeiras compradas em uma loja pro-movimento retrô do centro da cidade. Tinha uma mania de deixar a luz da varanda acesa. Fluorescente. De ler até tarde e dormir na rede.

Esquecia as cartas na caixa do correio, o jornal às vezes espalhado pelo chão. Assinava o “Diário” e o “Correio do Mercador”. Não era do comércio, mas sempre cortava a coluna de Matos Gusmão, um comentarista bairrista que era oposição ao governo e pagava tributos ao jornal para ter quinze ou trinta linhas de sangue no jornal.

A televisão era um modelo antigo, talvez uma Tooner TV dos anos 50, que dava para ver do lado de cá. Tinha botões grandes e uma resolução meio turva. O som dela era geralmente baixo.

Tinha ainda uma vitrola, daquelas que a caixa de som ficava na tampa. Tio Frederico tinha uma dessas na casa de praia em Buerlindas. A vitrola devia viver cheia de poeira... Ficava do lado da televisão. No ângulo estreito em que eu observava a vida alheia.

Embora houvesse trações de modernidade evidenciados pelos objetos geométricos coloridos que ficavam por todas as prateleiras, desde a varanda, a casa tinha um ar bucólico. Um tanto nostálgico. Quieto demais. Típico de quem vive a tomar chá, dormir e refletir.

Observava eu os pormenores, da minha janela comprida, que dava para a frente da rua. Todas as impressões sobre o moço eram fruto da minha dedução, basiada na minha inerente curiosidade feminina. Confabulações de progesterona. Tive que saber que ele fumava cigarro de menta e tomava vinho pro-seco. E isso foi culpa da aproximação causada pelo meu instinto metódico de organização e minha mania de rotinas e listas. Não suportava ver o jornal dele espalhado no chão do batente e dispunha-me a arrumá-lo e entregá-lo cada vez que me ocorria.

Não sabia muito sobre o vizinho da frente...

Foi um dia, numa manhã comumente corrida que eu o tive no abraço e no meio das pernas. Ocasional, nada intencional. Não tive opção, e ele muito menos.


Que sensação mais estranha. Sentia-me uma puta e tremia descaradamente refletindo o movimento do corpo dele junto ao meu. Mas tentei me segurar. Sentia a vibração. Pra mim, só queria que ele parasse. E parou. Suei, mas desci e disse obrigada. Fiquei esperando vê-lo ir naquele veículo. Um monstro azul. Decidi nunca mais pegar carona na moto do vizinho da frente. Bons moços precisavam de mais que isso para chegar a tal ponto. Qual era mesmo o nome dele? 

quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

[COM O PERDÃO DA PALAVRA]


Navegar é preciso. Navegar. Devagar. Não vagar. A nada dessas coisas se apegar. Quando um dia bom passa e escurece, diante dos olhos, navegar. Quando a roda viva não vai a despeito da fé, devagar. Quando a felicidade sem porquê se anuncia, não se apegar. Não diminuí-la ao momento. Não enclausurá-la na sua possessão. Deixar ser, viver e se propagar.
*

Ao fechar os olhos, ver o bem no mundo e o bom da vida. Ensaiar essa fé diariamente no subconsciente para que do ensaio, saia pelos poros, pelas ruas e fique com você no dormir e no acordar.
*

Ter amor e doar. Em amor que não se doa não há ciclo. Em ciclo que não se faz não ha vida. Porque aquilo que se move é vivo. Logo é vivo aquilo que se muda. Que medra. Que melhora.
*
Ao amar, melhore. Ao crer, mude. Ao mudar, comece por dentro.

Foto: Diego Nóbrega
Flickr: http://www.flickr.com/photos/diegonobrega

segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

[DISPENSA]



Dispenso
Amar com mar
e
Amor com dor.
De lado
rimas que não juntam além do som
não me agregam
não alegram
não calam
nem falam.
Fico com calma
e alma.
Que com essas me alimento

E vou vivendo, 
além de existir.

quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

Dia lindo.


Dia lindo começou diante dos meus olhos. Não sei se tinha sido àquelas exatas cinco horas que o sol havia começado a brilhar e revelar as cores das folhas de outono. Mas de qualquer forma desci as escadas, peguei um copo d’água e, lutando contra os meus olhos lacrimejantes, contemplei os primeiros minutos da manhã. Algumas coisas já aconteciam na cidade. Os motoristas de ônibus inauguravam a avenida larga como que cortando-a e abrindo caminho para os poucos veículos menores que trafegavam lerdos, condutores de olhos lacrimejantes, provavelmente.

Eu e minha água, relutantes em desbravar o dia. Mas fui hidratado e devidamente acordado por um café. Tirei o chevette da garagem e pus Roberto Carlos no toca cd. Maria me diz que devo mudar. Devo querer coisas mais modernas. Som que toca músicas da internet. Não sei disso, se já me faz tão feliz um toca cd.

Me juntei aquelas pessoas na rua. Incomodado de seguir um caminho tão longo calado. Querendo estar morrendo de amor como o Roberto, mas tinha chegado na fase que eu mesmo chamo amor. Aquela com o turbilhão já passado, onde há mais silêncio e palavras ditas no olhar.

Isso me fez lembrar de como Maria era linda. Algumas partes do seu corpo eram rígidas, enrijecidas pelo balé da infância, que ela secretamente treinava com uma colega da escola. Sua postura era impecável. Seus lábios bem cheios. Seus dentes, fortes. Por onde se alimentava. Por onde se fechava. Por onde sorria para me seduzir.

Lembrei dos meus papéis pendentes na mesa do escritório, mas poderia me inspirar passar em seu prédio. Então peguei uma artéria e desci na Gil de Góes onde ficava o seu lar. Uma das coisas que mais admirava sobre Maria era que ela tinha um lar. Tudo na sua casa tinha personalidade, tudo era simples, de fácil assimilação, tudo em algum ponto se conectava. Seu jardim dava mesmo flores enquanto o meu eu não molhava regularmente. Sua fruteira tinha frutas frescas e perto do relógio da cozinha tinha uma foto de meu lugar favorito no mundo: Praga. Nunca fui, mas amo através de Milan Kundera. Com um pouco de vergonha de ter lido aquele livro inteiro há tanto tempo e nunca mais ter me aventurado a terminar outro livro.

Também há livros em Maria. Muitos espirituais, muitas histórias clássicas, outras contemporâneas. Reconstruí Maria e seu lar na minha mente. Mal podia esperar. Estacionei debaixo da minha árvore de costume. Dei bom dia a seu Emanoel e subi as escadas de dois em dois degraus. Cheguei na porta do 301 ofegante. Bati três vezes na porta mesmo assim. É claro que Maria já estava acordada, composta, de café tomado e lendo as notícias do dia no jornal.

Abriu. Parei. Soltei meu último fôlego desesperado. Pelo que via no ângulo da porta, parecia mesmo que eu previra toda a cena. Maria acordada, composta, cheirando um pouco a café, e o jornal sobre a mesa. Mas que pontada senti no peito quando vi que tinha cortado seus cabelos mais que os meus.

Engoli seco e enchi os olhos, mas não disse nada.

- Você não gostou.
- Não é isso, nega. Eu só não me preparei...
- Discordo que sempre se tenha que se preparar pra isso.
- Mas por quê você...
- Por quê tão curto? Queria ver mais meu rosto e usar argolas enormes.
- Mas argolas você sempre usou.
- Mas queria ver como seria, se só o resto da beleza me bastaria.
- Maria, seu cabelo era tão lindo.
- Mas esse que eu tenho aqui ainda é o mesmo cabelo.
- Mas eu não entendo... Como vai ser pros trabalhos? Quem vai querer uma atriz de cabelo tão baixinho?
- Não sei, Antônio. E me dói que você não entenda que eu acho o meu natural belo. Sem tiaras, sem coques, sem tranças embutidas. Eu me vejo bonita assim. Vejo mais meus olhos, minhas maçãs – dizia tocando seu rosto -, sinto o meu olhar mais expressivo.
- Claro, você continua linda.
- Mas de onde veio essa idéia de cortar seu cabelo tão curto?
- Queria parecer mais com minha bisa.


Agora Maria também tinha olhos molhados. Os meus tinham se secado na discussão. Cansei de negar a mulher que me acolhia, não podia meu ego se machucar com a escolha dela. Dei um passo adiante. Lhe dei um abraço. Cheguei ao seu pescoço com mais facilidade e respirei fundo o seu cheiro de flor de manhã.

segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

[NÃO TER A VERGONHA DE SER]


Não sei o nome do meu anjo, mas sei que ela existe. E é mulher. Pra mim é meio que espelho, nem feio nem bonito, apenas podendo refletir tudo o que eu sou e do que me aproprio. Meu anjo incansavelmente trabalha. Muito frequentemente me diz em palavras mais angelicais que as minhas que “poderia ser pior”. É tão estranho estar na cozinha batendo ovos para o omelete e escutar de repente meu anjo me dizendo isso, palavras que chocam de frente com meus pensamentos – longe das chamas do fogão. É um embate que chega a ser injusto, porque minha indecisão, tristeza, dúvida, cansaço nunca tem chance de ganhar. Sentimento que fica estatelado ali no peito, com cara de pouco, com cara de bobo, com cara de que não merece atenção. Então eu sigo pensando em coisas melhores, lembrando de dias mais lindos, lendo coisas que me elevam a consciência, vendo o mundo através. Mas o mau agouro não me deixa um dia. E sempre vem bater ali, no mesmo lugar, fazendo cansar, às vezes chorar, mas nunca preparado pra o que diz o meu anjo. Pra o que nele faz de mim, um eu de músculos, carne, osso e pele, poderoso em si, sem nem saber a quem deve a graça de ser feliz.

quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

[NUA E CRUA]


Caminho com dificuldade. Você vê que esforço faço pra me levar adiante. Mesmo assim, sempre erro no auge do meu cuidado. Então descuido sem desespero. Sem exagero no destoque, no despensamento. E despensando vejo a vida como ela é. Inofensiva de tantos ângulos, cíclica em tantos pontos, frágil em tantos porquês. A vida fluida, fria, oca. Você me vê insistindo viver assim e me vê louca. Penso: você tem um recalque nos olhos que sempre te faz olhar mesma coisa; e eu uma falha na ideia que sempre me joga no mesmo erro – sem que eu sequer me mexa. Imperfeitos que somos, deuses de nossos desejos, não nos afastemos muito. De mãos dadas, vamos sair pra ver o sol.