segunda-feira, 9 de março de 2015

[BÊ ÉRRE]


Estou à bordo de um veículo que não navega. Nele embarquei, dele vou desembarcar. Dentro dele se permite sonhar. Sonhamos eu e os outros. Democráticos no nosso espaço, silêncio e sono. Com o barulho e o tremor vamos sentindo que vamos, passíveis do condutor. Aqui cruzamos os braços, contamos eucalíptos, imaginamos de onde vem os animais que se alimentam do pasto que parece infinito. Se pensa sobre as casas no meio do nada, sobre as barracas de castanhas e laranjas. Castanhas em pacotes, laranjas em rede. Meninos com sede que vão e vem abastecer as prateleiras de madeira e pendurar nos pregos frutas frescas.

No anoitecer o escuro é denso, na viração o sol é intenso. Moscas de luz, rajadas, mosquitos de chuva, água. Sereno que desce do céu sem se ver. Há as montanhas de perto, há as que mais parecem sombras. Background pintado de filme dos anos 30. Quase não há gente, consenso coletivo em fingir não-solidão. Pode haver música nas orelhas, lápis e papel no colo, telefone na mão, mãos sobre a cabeça ou atrás dela. Pés no chão ou em apoiadores. Quilômetros que vão, quilômetros que vento. Ouvir o lado de fora não deixa ouvir o lado de dentro.

Há as memórias que vem, que em nada dialogam com a paisagem, mas que –penso --, precisam de paz de espírito para fazer passagem. Paz essa, da qual inclusive disfruto para seguir viagem.


Foto: Lesley Dodson

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

[APORIA]


Na fotografia que fiz, olhava o filho. O filho solto, imponente, pequeno diante das árvores, das montanhas longínquas, dos passantes e do batente de onde desceram para caminhar. No papel, o filho parado. Pose de herói de mãos empunhadas. O contemplava crescendo.  A vida vendo. Nada demais fazia além de estar no seu lugar no mundo. Desligou-se dali. Mascava um chiclete que não lhe deixava costurar memórias e sentimentos. Do filho pro nada. Num ponto fixo descansava o olhar e se via menino. Tudo e nada havia mudado. Se vira o menino: Pai. Oi. Até onde vai o mar?

Foto: Bárbara Marques

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015



[PERDIDA EM TRADUÇÃO]                                                                                          

Lembro
Ávida, feliz e silenciosa.
Em mim a memória
Deixou um lugar.
Nela entro para sonhar
Entro nela e
em nada mexo
olho-a atenta se
desenrolar.
Não me incomoda
Saber o que vem
no próximo milisegundo
posso vê-la
dum mundo
que já se reinventou.
Moro nela,
metadede mim.
Dela pego
o pólen da sobrevivência.
Choro nela
Digo que sim.
Nela me permito
viver a ausência.

***

[LOST IN TRANSLATION]

I remember
Avid, blissful and silent.
In me, memory
Has set a space.
I enter it to dream
I enter it and
I leave things untouched
I see it
unravel.
It is no trouble
Knowing what comes
the next millisecond
It can be seen
from a world
that has been reinvented.
I live in it,
half of me.
From it
I get the pollen of survival.
I cry for it
I say yes
In it I allow myself
loneliness.

sexta-feira, 2 de janeiro de 2015

[RETRATO]



Me aproprio de uma foto
Quando a pego no papel
Memória fosca e quente
Impressa em pixels
De se olhar
De lembrar momentos
Em que fui personagem redondo
da prosa de minha própria vida.
Personagem que já mudou.
Que narrou e pausou a cinza das horas
Que esperou sem saber o que
viria pós-ciclos
pós-sorrisos
pós-poses.

Fui e sou
narrador-personagem
vivendo a viagem
se anunciando nos movimentos,
prevendo momentos,
fingindo tê-los 
tesos entre os dedos.

Nas fotografias 
faço faces
dito frases
solto palavras que me prendem o sorriso.

Comprimo o peito
olho as cores
finjo que posso pegar o que o momento me dá
nas mãos.

Invés disso
Vivo silencioso
 a frustração de me conformar
com o tempo num papel
fosco
quente
Impresso em pixels
de se olhar.



Foto: Bárbara Marques, em Sutro Baths, San Francisco.

quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

[PORTAS RETRATOS]


Sentei no sofá da sua sala a primeira vez atônito. Incerto do que dizer, do que fazer, de por onde começar minha entrega. Algo naquele sorriso fez os meus segredos pularem do meu peito desgovernados, ditos, meramente expostos: carne na mesa de operação, para que ela com eles, fizesse o que lhe apetecesse. Podia desorganizá-los e romper suas terminações nervosas. Suturá-los depois de lhes tirar a melhor memória de dentro. Poderia fazer incisões gigantes neles, e deixá-los sangrar no metal frio até que a morte os separasse de mim.

Por algum motivo me mantive sereno. Não lhe dissera que meus segredos o eram. Mas penso que ela sabia. Andava faceira de pés no chão da sua sala. A casa era o seu mundo aberto pra mim. Mundo que cheirava
diferente ao abrir o portão. Mundo de lances de escada acima, na altura de quem só sonha. No chão de sua casa tão alta eu via que seus pés eram tortos, que não sentiam nunca todo o apoio que a gravidade lhe dava de presente. A respiração, a voz, os cabelos emaranhados na altura do ombro eram também presentes inimagináveis, os quais não se podia macular. Maculá-los poderia ser sabê-los, invejá-los, cobiçá-los, querê-los em outras de estatura maior, menor, mais curvas, menos covas, corcundas, mais caladas. Nada nela me inspirava medo. Tudo nela me inspirava segredo. Mais deles para compensar os que, desgovernados, me deixavam sem assunto. Quando iam ao encontro do seu imaginário, ela assentia com a cabeça, engolia o vinho, sorria um sorriso não inteiro.

Seus porta-retratos portavam momentos que não entendia. Gente de costas pra lente, de frente pro mar. Cabeças cortadas nos lados, pessoas sem foco sorrindo. Era o mundo representado na estante, sem palavras para o narrar. No nosso círculo havia os que viviam de costas pros outros imersos no seu silêncio. Os que não se importavam com o que os outros pensavam deles, os que nada viam, mas iam seguindo algo que lhes movia adiante.


- Life is what happens to you while you're busy making other plans.
- Como?
- É o que diz a música, nessa parte.
- Ah, sim... você fala do John.
- É. Talvez.
- Mas a gente vive fazendo planos enquanto vive.
- Que planos você faz agora, enquanto estamos nessa sala?
- Quero ser uma das pessoas na foto.
- Qual delas?
- A que está naquele porta-retrato, que você ainda não tem no aparador.
- Quer mais vinho?
- Sim.
- Darling, darling, darling...
- Gosto dessa música.
- Falo com você. De você.
- Você escolhe bem os vinhos e as trilhas. E sofás também.
- Talvez eu só seja boa com pequenas escolhas.
- Pequenas escolhas podem mudar uma noite. Excitar o amor. Salvar uma vida.
- Se tivéssemos a eternidade, faríamos mais ou menos planos?
- Beberíamos mais.
- Amaríamos menos.
- Erraríamos menos ou mais?
- Eu teria errado menos na sétima série.
- Eu queria ter a chance de fazer diferente.
- A sétima?
- Me dá mais vinho.
- I'm just sitting here watching the wheels go round and round.
- Estamos ficando bêbados.
- É esse disco.
- Em 2005 eu perdi alguém muito importante.
- Morreu?
- Caiu da mudança. Me atrapalhei, não arrumei direito. Não coloquei na
caixa com as coisas frágeis, nem deixei este lado virado pra cima.
- Deixar um amor escapar assim é como não poder repetir a sétima série.
- Você não sente a gravidade. Nem cabe essa comparação.
- E onde esse amor cabe?
- Nessa música, nessa sala. Na distância que meus pés não conseguem
dar conta de alcançar. Em quase dez anos daquele cheiro na minha
memória.
- Vinho?
- Sempre.
- Você faz a vida parecer uma aventura misteriosa.
- Tenho alguns arrependimentos.
- Eu tenho poucos. Diria até que quase nenhum.
- Talvez eu também devesse me concentrar nas pequenas escolhas. Mas eu
não sei nem escolher o pão que compro, enquanto a decisão de ir embora
ronda a minha cabeça.
- Eu sempre escolho pão francês.
- Me ensina a ser assim.
- Então escolhe uma música. O disco acabou.
- Coloca aquela do Daniel Johnston, que diz que o amor verdadeiro me
encontrará no fim.
- Mais vinho?
- Mais. E que essa música esteja certa.
- Um brinde a isso.
- E foda-se a eternidade.



. por Eliza Araújo e Raquel Medeiros

quarta-feira, 5 de novembro de 2014

[ESQUERDO PEITO]

Estar na minha pele
é estar à flor da pele
Prestes a sufocar
De mal ou bem
A si ou alguém
Sem ter bem motivo.

É ir pelo amor
Ou pela dor
É não ter pra quê nem por onde
e viver longe,
sem a certeza do agora.
Porém certa
da demora
do que de fato quero.

Estar na minha carcaça
É querer se ver do avesso
Sem apreço pelo que passou
Com pressa de que se viva o agora
Sem drama
Sem hora
Sem cortes secos nas cenas.
Já que não se é sem pele,
Já que sem pele não se pode o amor,
pelo menos
respeite minha flor.

domingo, 12 de outubro de 2014

[PALMAS]


Mãos.
Mãos finas que afagam.
Mãos minhas
que mães
do resto do meu corpo.
Dóem quando sem tato,
caem quando não sei.
Mãos simples que francas,
que infantis no regaço
que discretas no cansaço
e no calor.
Mãos que sem amor
não tem porquê.

Mãos irmãs
em que se parecem
Incertas de que se merecem.
Mãos não presas,
mas
tesas no que quero dizer.
Quando dadas,
oferecidas numa entrega,
o são em dobro -
logo
são ímãs do bom
onde as palmas,
assim como as linhas da vida,
não hesitam em ir.


Foto: Maria Hill