quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

Dia lindo.


Dia lindo começou diante dos meus olhos. Não sei se tinha sido àquelas exatas cinco horas que o sol havia começado a brilhar e revelar as cores das folhas de outono. Mas de qualquer forma desci as escadas, peguei um copo d’água e, lutando contra os meus olhos lacrimejantes, contemplei os primeiros minutos da manhã. Algumas coisas já aconteciam na cidade. Os motoristas de ônibus inauguravam a avenida larga como que cortando-a e abrindo caminho para os poucos veículos menores que trafegavam lerdos, condutores de olhos lacrimejantes, provavelmente.

Eu e minha água, relutantes em desbravar o dia. Mas fui hidratado e devidamente acordado por um café. Tirei o chevette da garagem e pus Roberto Carlos no toca cd. Maria me diz que devo mudar. Devo querer coisas mais modernas. Som que toca músicas da internet. Não sei disso, se já me faz tão feliz um toca cd.

Me juntei aquelas pessoas na rua. Incomodado de seguir um caminho tão longo calado. Querendo estar morrendo de amor como o Roberto, mas tinha chegado na fase que eu mesmo chamo amor. Aquela com o turbilhão já passado, onde há mais silêncio e palavras ditas no olhar.

Isso me fez lembrar de como Maria era linda. Algumas partes do seu corpo eram rígidas, enrijecidas pelo balé da infância, que ela secretamente treinava com uma colega da escola. Sua postura era impecável. Seus lábios bem cheios. Seus dentes, fortes. Por onde se alimentava. Por onde se fechava. Por onde sorria para me seduzir.

Lembrei dos meus papéis pendentes na mesa do escritório, mas poderia me inspirar passar em seu prédio. Então peguei uma artéria e desci na Gil de Góes onde ficava o seu lar. Uma das coisas que mais admirava sobre Maria era que ela tinha um lar. Tudo na sua casa tinha personalidade, tudo era simples, de fácil assimilação, tudo em algum ponto se conectava. Seu jardim dava mesmo flores enquanto o meu eu não molhava regularmente. Sua fruteira tinha frutas frescas e perto do relógio da cozinha tinha uma foto de meu lugar favorito no mundo: Praga. Nunca fui, mas amo através de Milan Kundera. Com um pouco de vergonha de ter lido aquele livro inteiro há tanto tempo e nunca mais ter me aventurado a terminar outro livro.

Também há livros em Maria. Muitos espirituais, muitas histórias clássicas, outras contemporâneas. Reconstruí Maria e seu lar na minha mente. Mal podia esperar. Estacionei debaixo da minha árvore de costume. Dei bom dia a seu Emanoel e subi as escadas de dois em dois degraus. Cheguei na porta do 301 ofegante. Bati três vezes na porta mesmo assim. É claro que Maria já estava acordada, composta, de café tomado e lendo as notícias do dia no jornal.

Abriu. Parei. Soltei meu último fôlego desesperado. Pelo que via no ângulo da porta, parecia mesmo que eu previra toda a cena. Maria acordada, composta, cheirando um pouco a café, e o jornal sobre a mesa. Mas que pontada senti no peito quando vi que tinha cortado seus cabelos mais que os meus.

Engoli seco e enchi os olhos, mas não disse nada.

- Você não gostou.
- Não é isso, nega. Eu só não me preparei...
- Discordo que sempre se tenha que se preparar pra isso.
- Mas por quê você...
- Por quê tão curto? Queria ver mais meu rosto e usar argolas enormes.
- Mas argolas você sempre usou.
- Mas queria ver como seria, se só o resto da beleza me bastaria.
- Maria, seu cabelo era tão lindo.
- Mas esse que eu tenho aqui ainda é o mesmo cabelo.
- Mas eu não entendo... Como vai ser pros trabalhos? Quem vai querer uma atriz de cabelo tão baixinho?
- Não sei, Antônio. E me dói que você não entenda que eu acho o meu natural belo. Sem tiaras, sem coques, sem tranças embutidas. Eu me vejo bonita assim. Vejo mais meus olhos, minhas maçãs – dizia tocando seu rosto -, sinto o meu olhar mais expressivo.
- Claro, você continua linda.
- Mas de onde veio essa idéia de cortar seu cabelo tão curto?
- Queria parecer mais com minha bisa.


Agora Maria também tinha olhos molhados. Os meus tinham se secado na discussão. Cansei de negar a mulher que me acolhia, não podia meu ego se machucar com a escolha dela. Dei um passo adiante. Lhe dei um abraço. Cheguei ao seu pescoço com mais facilidade e respirei fundo o seu cheiro de flor de manhã.

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